Relembre a carreira do ídolo vascaíno Almir Pernambuquinho

dezembro 10, 2024 Off Por admin

Almir Pernambuquinho: a vida do touro indomável do futebol que pressentiu a morte precoce

Valente, mas com medo de fantasmas em concentrações nas madrugadas. De fala mansa e carinhoso, mas intempestivo e irascível nos muitos momentos de rebeldia e de brigas em vida. Almir Pernambuquinho fez máximo de 100 jogos num único clube e ainda assim é inesquecível.

Ídolo de rivais e de duas maiores torcidas do país, Almir Moraes Albuquerque misturava personalidades até morrer assassinado num bar em Copacabana aos 35 anos. Saiu de cena cedo no meio de um roteiro romântico e policial daqueles que tanto gostava de assistir no cinema na sua Copacabana. De preferência com seu ídolo Steve McQueen.

  • “… com a cabeça orientada no rumo geral do Leme, os pés no rumo geral de Ipanema e o corpo paralelo às portas do Bar Rio Jerez”, dizia, com ares de crônica, o laudo de morte de Almir na madrugada de uma terça-feira, em 6 de fevereiro de 1973.
  • A história de Almir, como diz o clichê, é muito mais do que futebol. Tem bravura, idolatria, parcerias históricas e também boemia, homofobia, covardia e impunidade nos dias finais.
  • O ge conta essa história – trilhada entre Afogados e Copacabana – em texto e também em reportagem especial em vídeo que você pode assistir no início deste texto.
  • Com detalhes inéditos sobre o processo criminal, encerrado em 2007, da morte de Almir.

– Ele era o “Touro Indomável”.

A referência ao filme de 1980 sobre o boxeador Jake LaMotta, vivido por Robert De Niro, que foi do topo no esporte à lona na vida é lembrada pelo filho de Almir. Ele se chama Álvaro, mas é conhecido como Almirzito e é fã de cinema como o pai.

– Eu sempre achei que é um título (“touro indomável”) que caberia para ele também. Pelo gênio forte – define Almirzito, hoje com 62 anos. Ele é pastor em Praia Grande (SP), onde vivem a irmã Adriana e a mãe Maria de Lourdes, que foi casada por sete anos com Almir.

Divididas entre Recife e Praia Grande, a família guarda fotos, jornais, contratos e cartas da vida de Almir. Preservam a história do personagem que abriu o baú de memórias pouco antes de morrer em depoimentos marcantes para o jornal Pasquim e, principalmente, para a revista Placar.

– Meu pai sempre falava para a minha mãe cuidar bem da gente porque ele não ia estar presente. Ele já sentia isso. Ele já sabia. De alguma forma ele tinha pressentido – revela a filha de Almir, que também é pastora evangélica em São Paulo.

– Ele estava vendo os dois dormindo na cama. “Toma conta deles, porque tô vendo que não vou ver eles crescerem”. Falei: “nossa, que besteira, para que falar isso?” “Eu sinto”. São coisas que a gente não sabe explicar, né – conta Maria de Lourdes.

Nos últimos meses, a reportagem do ge entrevistou familiares, ex-jogadores e consultou cerca de 1 mil páginas dos arquivos do judiciário carioca para mergulhar na vida e na trágica morte, há quase 52 anos, do jogador revelado pelo Sport que foi ídolo do Vasco e do Flamengo e protagonista do bicampeonato mundial do Santos – com a 10 de Pelé! – no Maracanã, em 1963.

Nos processos na Justiça, há depoimentos do dia seguinte às mortes de oito testemunhas que estavam no local do assassinato de Almir – e também de Alberto Russo, um comerciante, fã que virou amigo do Pernambuquinho e levou um dos tiros fatais naquela noite na antiga Galeria Alasca.

Os documentos ainda trazem informações sobre a fuga dos turistas estrangeiros, os portugueses Artur Garcia Soares, assassino confesso de Almir e de Alberto, e Antonio Samuel Vicente, além de José Salazar e Salazar, espanhol e filho adotivo de Artur. Estão preservados no arquivo do judiciário até mesmo fragmentos das balas disparadas naquela noite no bar em Copacabana – colhidas pela perícia.

Nascido no bairro dos Afogados, no Recife (PE), filho de Adelaide e Arlindo, Almir era o mais velho de cinco irmãos – os também ex-jogadores Arlindo, Ayres e Adílson, a irmã se chamava Adélia. Todos com a letra A, como os filhos de Almir, Álvaro e Adriana. Na infância, ele tratou doença óssea na perna, o que fez uma ser nitidamente mais curta do que a outra, mas não atrapalhou a carreira no futebol.

A família morava na Estrada dos Remédios, bem próximo ao estádio do Sport, onde Arlindo pai, torcedor do Santa Cruz, largou o emprego de entregador de padaria numa bicicleta para abrir uma mercearia após ganhar no jogo do bicho – jogou no 0081, número que, por coincidência, corresponde ao touro na aposta. E também é o código de área da capital pernambucana.

Com o dinheiro, casou-se com Adelaide e abriu o próprio negócio, o qual sofria para manter longe dos ladrões na região nos Afogados. Era descrito pelos amigos como homem duro, rígido, numa educação de outros tempos, em que era comum bater nos filhos para dar bronca e “corrigir” comportamentos.

– Papai tinha revólver e espingarda. Nessa época tinha muito arrombamento na mercearia. Ele ficava escondido e quando os caras iam arrombar, ele pegava – conta Adílson, hoje com 78 anos, o caçula dos filhos da família Moraes Albuquerque e que teve boa passagem pelo Vasco na esteira de Almir. O outro irmão vivo é Ayres, que hoje vive com a doença de Alzheimer.

Com o mesmo nome do tio famoso, o sobrinho Almir lembra de idolatria do pai Arlindo pelo irmão e da fama de boa de briga da família. O pai lutou boxe e tinha até nariz quebrado. Mais tarde, foi levado por Almir para o juvenil do Boca Juniors. Ele parou cedo e foi preparador físico de grandes treinadores que passaram pelo futebol pernambucano, como Abel Braga, Ênio Andrade e Levir Culpi.

A primeira confusão em campo

Almir seguiu a trilha de outros pernambucanos famosos no Rio de Janeiro, em São Januário – Ademir Menezes e Vavá, com quem Almir jogou ao lado de Bellini, que viria ser protetor, conselheiro e ainda padrinho de batismo e de casamento. No Vasco, foi um estouro. Conquistou títulos, fez 57 gols em 100 jogos e se tornou ídolo rapidamente.

Pelo Sport, há registros de apenas uma partida de Almir. Foi numa excursão para São Luís (MA), um jogo que terminou 1 a 1 contra o Maranhão. Era um amistoso, o que não existia muito para aquele garoto que ainda era mais famoso nos juvenis do Sport pelo talento do que pelo temperamento.

– O juiz deu um gol. Aí ele chegou, na hora de bater o centro… “ô, juiz, não vai anular o gol, não?” “Ô, rapaz, bate o centro”. Aí ele xingou o juiz e de repente buuum… deu um murro no juiz. E esse juiz era capitão da Polícia – lembra, hoje aos risos, Inaldo Amorim Maia, o Mainha, ex-jogador de destaque no futebol pernambucano.

– Eu falava: “todo jogo você quer brigar”. Ele dizia: “eu não quero brigar, os caras que me provocam. Não consigo me controlar”. Mas no juvenil ele era calmo, manso, manso… Tomava porrada e nem revidava. Aí no profissional, de repente… começou a dar murro.

Ponta-esquerda, Mainha também seria levado pelo empresário Cier Barbosa para o Vasco. Mas desistiu a pedido da família. Almir, que estava na mira do então poderoso Náutico, rival do Sport, embarcou sozinho e fugido, contavam as manchetes dos jornais da época.

No Rio, paixão e morte, num crime impune

Almir apaixonou-se por Copacabana ao desembarcar no Rio de Janeiro. Depois da precoce aposentadoria, andava de chinelos e short e frequentava a praia até de noitinha com os filhos quando vinham passar férias com o pai.

Depois da separação de Lourdes, supria a solidão com a casa cheia de amigos. Gente do futebol como Silva Batuta, Dida e outros que vinham de longe para visitá-lo. A casa de Almir, primeiro na rua Barata Ribeiro e depois na rua Dias da Rocha era ponto de encontro de pernambucanos e nordestinos .

Na noite do assassinato, Almir estava de carona com o amigo Alberto Russo, que tinha loja de decoração próxima da casa do ex-jogador, Eloy Lima, o Japonês, e duas mulheres, uma delas, ex-namorada de Almir, Eunice Ferreira de Souza, que se juntou por último com o grupo.

Eunice conhecia Almir há quatro anos e era sua “confidente”, como explicou em depoimento à Delegacia de Homicídios. Almir estava “triste e precisava de um conforto”, escutou a ex-namorada de Almir, aceitando sair, pois a noite seria em “homenagem” ao ex-jogador, que prometera não se meter em mais confusão na rua. Almir e Alberto foram atingidos por Artur depois de 2h da madrugada.

– A história do meu pai não era aquela. Claro que ele não era obrigado a andar com ele (Almir). E ele estava tendo problemas com a minha mãe, isso eu sei pela percepção de criança. Meu pai era um cara muito caseiro, muito de família e que começou a chegar tarde. Isso eu relaciono a ele e a amizade com o Almir. Ele era boêmio – lembra Alberto Russo, que durante anos foi mal resolvido com a figura de Almir e o afastou um pouco do Vasco, time do pai, de quem também herdou o nome.

Artur, assassino de Almir e Alberto – e que também feriu com tiro na coxa Eloy -, tinha 52 anos e estava no Rio de Janeiro há seis meses como vendedor ambulante de tecidos, com visto de turista vencido. O português comprou uma pistola Beretta, na loja “A Esportiva”, em Araraquara (SP), em 21 e 22 de dezembro de 1972 – num dia comprou a arma e cartuchos, no outro mais munição.

O português se defendeu e aproveitou a fama de brigão de Almir em depoimento na Polícia – alimentado por diversos recortes de jornais levados pelo advogado Newton Feital, que também lembrou o benefício de pena anterior em 1968 e trouxe aos autos duas testemunhas que acusavam Almir de outras confusões com cunhos homofóbicos em Copacabana (uma delas com João Austregésilo de Athayde, uma lenda do jiu-jitsu carioca que imobilizou e castigou Almir em briga na rua Pompeu Loureiro, no bairro).

– Ele batia em todo mundo. Uma vez colocou dois banhistas para correr da praia com pau da barraca. Comigo, foi a única vez que apanhou. Ele era muito forte, eu batia e ele não desistia. Demorou muito até parar de bater nele – lembra, hoje morando em Rio das Ostras, João Austregésilo.

Artur alegou legítima defesa e disse que, se não atirasse, seu filho adotivo – José Salazar – seria morto na briga, pois teria sido agredido por Almir e seus amigos com “cadeiradas” e “garrafas partidas”. Afirmou que “ficou apavorado com agressores vindo em sua direção” e atirou sem “visar ninguém”, reconhecendo que deu “uns três tiros”.

Os depoimentos de Eloy e da namorada Ana, que descreveu Almir “pensativo” segundos antes de iniciar toda a confusão no depoimento, contam que Almir ficou sozinho no início da abordagem dos estrangeiros – isto porque Eunice saiu da mesa e andou pela galeria na confusão inicial da mesa com os Dzi Croquettes. Eloy, Ana e Alberto foram convencê-la a voltar para o bar.

Um dos tiros matou Almir – a bala entrou acima da orelha do ex-jogador, o que indica que o atirador estava “em posição látero direita em relação à vítima”, segundo os peritos – e outro Alberto – atingido no pescoço e que morreu a caminho do Hospital Miguel Couto. O terceiro atingiu Eloy na perna.

Depoimentos mostram versão menos conhecida

Durante anos, duas versões foram difundidas sobre a morte de Almir. Numa delas, o ex-jogador defendia os Dzi Croquettes, grupo de dançarinas travestis que se apresentara na Galeria Alasca e teriam sido insultadas e destratadas pelos estrangeiros. A outra, o contrário. Almir ofendia e agredia as travestis e os portugueses tomaram as dores até se consumar a tragédia.

Em 1994, o jornalista Mario Prata, no “Estado de São Paulo”, contava a primeira versão e dizia também que um dos amigos de Almir estava armado e que houve tiroterio. Os depoimentos colhidos pela Delegacia de Homicídios na época foram em outra direção – seja no dia seguinte da morte de Almir ou uma semana depois quando houve acareação entre um garçom do bar e o assassino português.

Foi Almir quem se incomodou com o comportamento da mesa dos Dzi Croquettes – um dos depoimentos dá conta de provocação dos dançarinos ao ex-jogador – e investiu contra o grupo. Chegou a agredir um na outra mesa – um cabelereiro famoso chamado Antonio Carlos da Costa Camizão – até se deparar, pouco tempo depois, com reação dos estrangeiros no bar em Copacabana.

“Isso não se faz, é uma covardia” foi o comentário de Antonio Samuel Vicente relatado em depoimento na delegacia, tendo recebido de volta, ainda segundo Antonio, “um soco no peito e dois tapas no rosto” de Almir. Um dos amigos de Almir teria seguido com agressões contra José Salazar.

Eunice, companheira de Almir, relatou a seguinte discussão antes da briga que terminou com a morte do jogador e de um amigo. (Os Dzi Croquettes) “passaram a fazer baderna e galhofas, atirando bolinhas de papel contra Almir; que Almir tinha ‘muita bronca’ destes tipos de rapazes, pederastas; falando ‘vocês têm que respeitar os presentes’… Almir e Eloy aplicavam alguns ‘cascudos’ nos pederastas”, disse em depoimento. Ela, que fizera em outros momentos Almir prometer não se meter mais em confusões, deixou o bar no início do tumulto e não viu o ex-jogador ser assassinado.

Não houve tiroteiro ou registro de qualquer uso de arma no grupo de Almir, de acordo com a investigação policial e os depoimentos colhidos. Apenas Artur, autor dos três disparos e que matou duas pessoas, estava armado. A outra arma apreendida na investigação era do policial militar Plautus do Espírito Santo, a serviço na Embaixada da Áustria, que ficava metros ao lado do bar Rio Jerez. Ele correu para ver a ocorrência e chegou a dar um tiro para o alto. Conseguiu segurar a argentina Elcira Barragan, acompanhante de Artur e que se assustou quando a confusão começou. Ela estava grávida.

Uma triste ironia da história é que os estrangeiros foram defendidos por antigo conhecido de Almir. O advogado Newton Feital, então diretor jurídico do America, o último clube de Almir, foi contratado por representantes da colônia portuguesa. Criminalista de mão cheia, pegou casos de grandes repercussão midiática como do caso Aída Curi – mulher morta por três jovens em Copacabana -, defendeu o conhecido traficante Escadinha e trabalhou para Almir nos tribunais desportivos e até mesmo num processo contra o jogador por confusões fora de campo.

Feital fez acordo para que escapasse da prisão de três meses por benefício de suspensão do processo. Almir deveria ir ao juizado da 15ª Vara Criminal do Rio de Janeiro depois de condenação por agressão a um porteiro em Copacabana, em 1968 – quando teve outras duas anotações na Polícia.

No processo, chegou a informar em juízo que negociava para jogar com o Bahia, mas bola Almir só voltou a chutar na praia. Como parte do acordo do processo, apresentou-se por duas vezes em juízo – em fevereiro de 1972 e, pela última vez, em agosto do mesmo ano. Seis meses antes de morrer.

Falecido em 1984, Feital era um grande torcedor do America e tinha boa relação com Almir, lembra o filho de Newton, Paulo Cesar Feital. Músico e compositor de inúmeros sucessos na música brasileira, Paulo conheceu Almir e ouviu confidência semelhante à contada por Mainha, no Recife. Com a diferença que ela se passou mais de 15 anos depois, e no Rio de Janeiro.

– Eu jogava futebol de praia. Num sábado, ele (Almir) olhou pra mim e disse assim: “vamos tomar um guaraná”. Eu gostava já na época de tomar um uísque. Aí sentamos ali, conversamos, e ele, com os olhos cheios de lágrimas, disse assim “eu não consigo me controlar”. Ele dizia “eu não sou isso” – conta Paulo Cesar Feital, que recorda do ex-jogador como pessoa doce.

– Isso me marcou. Aquele cara considerado um leão, naquele momento, aquela alma se desvaneceu.

Gols em finais, na lama e carreira internacional

Dentro de campo, a maior glória de Almir foi em substituição a Pelé, no Santos, na final do Mundial de Clubes de 1963 contra o Milan. O Peixe perdeu a primeira partida por 4 a 2 em Milão e trouxe a decisão para o Maracanã – Pelé, machucado, ia ficar de fora e Almir vestiu a 10. Nos 4 a 2 e no 1 a 0 no Rio de Janeiro fez apenas dois dos 39 jogos com a camisa do Santos – e um dos quatro gols -, mas marcou para sempre seu nome na história do clube da Vila Belmiro.

– Quando ele saiu daqui, todo mundo gostava dele. Ele era sensacional. Ele tinha as duas coisas boas. Ele era peitudo, corajoso e técnico. Tanto que era chamado de Pelé branco. Foi um puta de um jogador. Era baixinho, fortinho, encarava. Não tinha tempo ruim com ele. Mas jogou pouco aqui. Porque para entrar no lugar do Pelé, não dava – lembra Maneco, que era reserva do Santos e por isso teve mais contato com Almir, substituto do Rei no Mundial de 1963.

– Era um cara que não podia morrer. Era amigo, amigo mesmo…

Quando deixou o Vasco no fim do ano de 1959, Almir carregava a fama de jogador talentoso, mas violento. Levou suspensão por lance em que quebrou a perna de Helio, zagueiro do America, e se sentiu perseguido pela imprensa – carregava mágoa grande de Armando Nogueira, colunista do “Jornal do Brasil” que o chamava de “celerado”, um maldoso na profissão.

– Até hoje é a mesma coisa, o zagueiro pensa que é o dono do campo. Inclusive orientado pelo treinador. Tem aquela velha frase, dá uma porrada que ele não volta. Mas Almir era pior. Se você desse, era pior, porque aí ele voltava dobrado. Essa de Helio, na certa Helio deve ter dado algumas, aí pronto. Mas Pelé quebrou a perna de dois e ninguém falou nada – defende Adilson, irmão de Almir, que foi levado ao Vasco pelo irmão e fez boa passagem por São Januário.

Vendido ao Corinthians, onde ganhou o apelido de “Pelé branco”, Almir durou pouco no Parque São Jorge – fez apenas 29 jogos e cinco gols. Saiu alegando boicote de alguns veteranos do time e foi levado ao Boca Juniors por Vicente Feola, técnico campeão do mundo com a Seleção. Na Argentina, fez 20 partidas e 11 gols, mas saiu depois de briga feia no campo do Chacaritas e nova suspensão. Passou pela Fiorentina e Genoa, na Itália, até retornar ao Peixe.

Curioso é que apenas cinco meses antes de ser protagonista do Mundial no Maracanã, em Santos, Almir levou um tiro na perna quando saiu em defesa de Batista, seu companheiro de time, nas ruas da cidade. A briga e o tiro em situações semelhantes ao da morte de Almir no Rio foram lembrados por Feital no processo de defesa dos estrangeiros.

A fórmula de Castor e a briga em 1966

Polêmicas à parte, Almir conquistou títulos em quase todo clube em que passou. No retorno ao Rio de Janeiro, contratado pelo Flamengo, foi destaque do time campeão carioca em 1965 – beirava os 30 anos e era chamado carinhosamente de “careca” pelos amigos.

A passagem pelo clube da Gávea – com 74 jogos e 20 gols – sintetiza bem a relação de Almir com o futebol. Com a 9 nas costas, fez o “gol da lama” ao se jogar para completar numa segunda cabeçada a bola espalmada por Ubirajara, do Bangu, e tirar a invencilidade do time alvirrubro na campanha de 1966. A cena foi parar nas páginas da “France Football” e, claro, nas crônicas de Nelson Rodrigues.

– Era o famoso catimbeiro, né. Ele provocava. Pisava no pé do cara. Agarrava no calção do cara sem ninguém ver. Ou jogava uma coisa na cara do cara. Ele fazia isso tudo, do futebol, é a manha do futebol. Quando era contra ele, era triste. Que força que tinha aquele cara – lembra Paulo Henrique.

E também protagonizou batalha campal, como lembra o amigo hoje com 81 anos e trabalhando no Macaé. Paulo Henrique nunca esquece da véspera da final de 1966 contra o Bangu. Almir desconfiou do goleiro Valdomiro, que teria sido procurado por Castor de Andrade. Conta que o jogador não foi para a concentração com o grupo.

– Ele me catucava: “Paulo Henrique, cadê o Valdomiro?” “Não sei, cara, como é que eu vou saber”. Nove horas da noite, ele chega de carro. E ele não tinha carro. Chega de carro novinho. Entrou e subiu direto (para o quarto na concentração). Almir começou a falar, “vai lá, vai lá” e fui para o quarto do Armando Reganeschi (técnico). “Precisava falar com o senhor e o senhor Veiga (dirigente)”. Expliquei tudo a ele, está acontecendo isso, isso e isso. Almir está dizendo que o Valdomiro se vendeu. Eu não tenho prova, eu só estou falando o que ele está me falando” – lembra Paulo Henrique.

O caso é contado de outro ponto de vista pelo advogado rubro-negro Clóvis Sahione, que logo depois foi encarregado de defender Almir nos tribunais – a maior pena pela briga generalizada foi de Almir, que pegou 160 dias. Depois, a punição foi reduzida pela metade. Castor era cliente de Sahione e foi ao escritório do advogado no sábado. Exibiu um revólver de ouro e contou que sabia que ia ser campeão.

– Ele disse: “aprendi como ser campeão”. Falei: “é mesmo, Castor? Aprendeu como, tem faculdade para isso?” – recorda Sahione, em entrevista no seu escritório no Centro.

No Maracanã, o Bangu venceu facilmente por 3 a 0 no primeiro tempo e conquistou o segundo e último título estadual da sua história – Paulo Henrique entende que Valdomiro falhou em todos os gols. Recorda também que Almir lhe disse que caso ele não brigasse, ia apanhar de Almir mesmo.

– Almir defendia muito os mais fracos. O ponta-direita Carlos Alberto, que gozava mais com ele, beijava a careca dele… foi quebrado pelo Ari Clemente, lateral do Bangu. Aí Almir já ficou assim… Mais na frente, o cara deu uma tapa em Paulo Henrique. Almir também adorava Paulo Henrique. Aí Almir chegou e o Renga (técnico): “Almir, tem que tirar o goleiro deles”. Almir foi lá para o goleiro (Ubirajara) e disse: “vou ter que te tirar”. (risos). E o cara “logo eu, Almir?” “Não, é que o homem tá mandando”. Estava 3 a 0 já. Não tinha mais jeito – conta Adílson.

Sergio Brito “Cachorrão”, amigo de Copacabana, conta que na semana da final Almir bebia com ele em Copacabana e dizia que ia comer grama para ser campeão, mas que se não desse certo ia brigar com Ubirajara, pois não gostava do goleiro do Bangu. A cena que ficou para a história é de Almir correndo atrás de Ladeira, que agrediu antes Paulo Henrique e foi pisado pelo Pernambuquinho em seguida.

Processo extinto em 2006

No Brasil, muitas vezes se diz que quem morre vira santo. Almir dizia, numa sinceridade desconcertante, que era “um marginal do futebol”. Morreu há mais de 50 anos e nunca teve essa condescendência. E nem queria ter, como deixou claro no depoimento à Placar. Entrevista que servia para ele conseguir um dinheiro extra num momento de dificuldade financeira.

Depois de brigar com Flávio Costa, a quem considerava autoritário, e deixar o Flamengo depois de ser afastado, os últimos passos no futebol foram entre 1967 e 1968, pelo America – Almir saiu do Flamengo sob os desmandos de Flávio Costa ao se desentender com um dirigente que ficara encarregado de lhe vigiar em viagem à Rússia. No America levado por Evaristo de Macedo, seu ex-companheiro em 1965 no título do Flamengo e técnico pela primeira vez, encontrou em Edu, irmão de Zico, um grande parceiro de ataque, mas já estava “cansadinho”, como brinca o companheiro.

– Ele não tinha mais interesse de jogar. Ele estava muito nervoso, sabe. Era preciso ter cuidado com ele nos treinos, se desse uma pancada nele era problema. Mas ele jogava muito bem. Eu apreciava ele jogando. Pena que ele não tinha tranquilidade, não tinha cabeça – lembra Evaristo, aos 91 anos, um contemporâneo de Almir ainda nos tempos de grande centroavante.

Almir já estava fora de forma e o corpo cobrava a conta do uso frequente de Dexamil, a “bolinha”, prática comum no futebol antes da regulamentação dos exames antidoping. Ele usou o “remedinho” – que não deixava ir parar na boca dos atletas mais novos – na final do Mundial pelo Santos, por exemplo. A última apariação em campo foi num jogo contra o Olaria. Foram 21 expulsos quando Almir defendeu Edu e só conseguiu sair da Rua Bariri depois de 21h, num camburão da Polícia.

– Estava 1 a 0 para nós. Na cobrança de escanteio, eu sempre ficava no segundo pau. Eu vi que a bola dava para eu chegar. E o Almir, paralelo à minha posição, ele não olhou para a bola não, ele correu e foi na cara do Edson (goleiro do Olaria). Tirou uma porrada de dente do Edson… – recorda Edu.

– Só sei que eu caí dentro do gol, só eu e ele. Então a porradaria comeu. O Edson com a boca toda sangrando. Aí pega daqui, pega dali… lembro do falecido Eduardo, ponta-esquerda, botou as duas chuteiras na mão, isso também ficou gravado para mim… com a trava, Deus me livre.Com a nova suspensão, a aposentadoria veio e Almir passava mais tempo nos bares, mas as confusões não cessavam. Até a madrugada de 6 de fevereiro de 1973 e o encontro com o português Artur.

Durante muitos anos, o caso ficou aberto na Justiça carioca, mas com poucos avanços. As autoridades brasileiras das fronteiras nunca encontraram vestígios da fuga e até fizeram contatos com a Interpol, com pedido de extradição em caso de captura.

Antonio Samuel Vicente, amigo de Artur, chegou a ficar preso 14 dias entre agosto e setembro de 1976 – três anos depois da morte de Almir e Alberto. Newton Feital foi quem conseguiu seu álvara de soltura – o português, em 1968, já tinha respondido a processo por briga feia de trânsito. Mas nem Antonio, muito menos Artur e o filho José Salazar nunca foram levados ao tribunal do júri – todos tiveram status de culpados no desenrolar do processo. Os dois últimos a revel (ou seja, sem se defenderem).

Salazar, que tinha 35 anos no caso de 1973, ficou preso tempos depois por falsificação de documentos e uso de nome falso em Vigo, na Espanha – no processo há registros de pedido de extradição, mas não havia acordo de extradição entre pesos dos governos brasileiros e espanhol da época. Especulou-se que Artur fugiu por via terrestre e voltou para Portugal depois de passar por Angola. Em 2006, extinta a punibilidade do trio, o processo foi arquivado na Justiça do Rio de Janeiro.

– As pessoas falam do Almir como um grande marginal. Eu acho que não era. Esse tipo de ser humano é um sofredor. É conviver diariamente com essa personalidade dupla. É como se você fosse sentinela de você. Você se guarda, senão aquele cara vem à tona. Quando o outro sai, é uma desgraça – diz Feital, com sua interpretação sobre Almir.

Almir era descrito como sensível e delicado pelos amigos de maior confiança. Nesta reportagem as recordações dos amigos vão desde a caranguejada em balde dentro de casa ao copo de café com uísque para os amigos. O cara que abrigou um morador de rua em casa e era cuidadoso com um rapaz paraplégico e com deficiência neurológica na sua rede de futevôlei – que Almir comprou quando assinou com o Flamengo – tinha a definição mais sincera sobre ele próprio:

– Recuso o mito do atleta exemplar. Sou um homem normal. A imagem do jogador que não bebe, não fuma, não joga, dorme cedo e acorda de madrugada não combina comigo. Bebo moderadamente, me divirto e vivo para a minha família – dizia o eterno Pernambuquinho indomável.

Principais títulos de Almir:

  • Vasco: No Vasco: com 57 gols em 100 jogos, foi campeão carioca em 1958 (Supersuper) e do torneio Rio-São Paulo (1958);
  • Santos: com 39 partidas e 4 gols, foi campeão mundial e da Libertadores em 1963. Campeão brasileiro em 1963 e 1964. Campeão do torneio Rio-São Paulo em 1963 e 1964;
  • Flamengo: com 74 jogos e 20 gols, foi campeão carioca em 1965;
  • Boca Juniors: com 6 jogos e 1 gol, foi campeão argentino em 1962.

Agradecimentos: a reportagem contou com contribuições inestimáveis da família Albuquerque, mais arquivos do Centro de Memória do Vasco da Gama, do museu do Sport Recife, do acervo particular de Sérgio Frias, da pesquisa de Lucio Branco e do Acervo Permanente do Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro e com pesquisa em jornais e revistas da época.

Fonte: ge